Mesmo na espiritualidade, sempre de novo corremos o risco de, com grande desconsideração e insensibilidade, objetivar Deus, como se Ele fosse um ente entre outros entes, como se Ele fosse de alguma forma localizável como algo diante ou ao redor de nós. Tal risco corremos mesmo que admitamos, segundo a mundividência do cristianismo, que Deus é Espírito; Ser Supremo; Origem e Meta; Criador e Mantenedor de tudo quanto foi, é e será; Causa primeira de todos os nossos atos, algo como o toque primordial da possibilidade de todas as nossas ações, de todo o nosso ser e não ser.
E assim seguimos, denominando Deus como mais íntimo que o nosso próprio íntimo; como o mais profundo, o mais extenso, o mais alto e poderoso; como o mais presente; como mais originário e anterior do que cada um de nós a si mesmo. Por fim, dizemos que Deus é a condição da possibilidade de ser, a partir e dentro da qual todos nós, juntos e cada qual em particular, a todo o tempo e a cada momento, nos movemos, vivemos e somos.
Mas, ao assim falarmos e supostamente assim vivenciarmos as nossas “experiências religiosas”, estamos já atrelados a uma determinada pré-compreensão do ser. Na nossa primeira reflexão, intitulada A pergunta O que é espiritualidade?, dissemos que essa pré-compreensão nos impede a percepção imediata e concreta do sentido do ser, mais vasto, mais profundo e mais originário que, como um outro hálito, como uma nova e outra vitalidade, como uma inteiramente diversa visão, nos poderia talvez abrir toda uma paisagem, todo um mundo próprio da realidade, na qual a “coisa ela mesma” da experiência religiosa estaria em casa, na familiaridade da sua identidade.
O ser dessa dimensão do “novo céu e da nova terra” é tão transcendente à medida da nossa cotidianidade, do nosso ser humano mortal e finito, que a assim chamada experiência de Deus, o conhecimento de Deus, o relacionamento afetivo com Deus parece não passar de uma projeção antropomórfica de nossos critérios, de nossos desejos e de nossas representações sobre a realidade.
Tal dimensão nos é, portanto, inteiramente desconhecida, inaveriguável, sim, quimérica, de modo a dizermos que nela é necessário só crer, e crer “cegamente”, uma vez que se trata da dimensão da Fé, ou da dimensão que não se refere à área da compreensão, do intelecto, mas, sim, à área onde vivenciamos atos irracionais, como sentimentos, pressentimentos e sensações paranormais, ou, ainda, acena à área das ações práticas de atuação e transformação da “realidade” que antes apenas interpretávamos. Não obstante tal redução, vislumbramos, embora vagamente, que há algo como experiência de Deus enquanto experiência transcendente a todas as nossas medidas de saber, conhecer, sentir e querer, acerca da qual temos de alguma forma notícia, através dos relatos, escritos, que nos foram apresentados e legados por pessoas de alta inteligência, de impecável conduta moral, de sutil sensibilidade e imensa competência de penetração místico-especulativa, chamadas de santos, de místicos e religiosos de toda sorte.
Estes se referem, assim nos parece, com a maior naturalidade – para não dizer “sem-vergonhice” –, a essas realidades transcendentes, como quem fala da realidade vivida, presenciada, sentida e compreendida aqui e agora no próprio ser. E juntamente com isso encontramos pessoas, inclusive nós mesmos, estudadas ou incultas, que falam, falam, e tornam a falar com tanta facilidade e espontaneidade de Deus, e da experiência própria ou alheia de Deus, usando Deus como instrumento de argumentações, de auto justificações, de tal sorte que Deus acaba se transformando em “casa da sogra”, em um “deus ex machina”.
Assim, de um lado, a experiência de Deus se torna uma realidade tão inacessível à nossa “experiência”, a ponto de a considerarmos, o seu “objeto” incluso, como nada; e, de outro lado, a experiência de Deus se banaliza de tal modo que a igualamos, o seu “objeto” incluso, com qualquer coisa, sobre a qual sabemos, da qual podemos falar, que podemos pensar e manipular ao nosso bel-prazer ou conforme a nossa necessidade. Refletir sobre a experiência, e agora sobre experiência de Deus, traz-nos sempre de novo esse impasse da perplexidade.
Trecho da obra: "Coisas velhas e novas"
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