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Os sete pecados capitais: a gula

Redação

O vocábulo gula, com raiz no latim gula-ae, significa tanto a boca e os órgãos da deglutição – esôfago, goela, garganta – quanto a ânsia imoderada de comer, beber e devorar.

A comida é a droga mais aceita no convívio social. Evágrio Pôntico (345-399 d.C.) considera a gula como a primeira tentação, sendo a luxúria a segunda. O eremita dividiu os oito vícios entre duas categorias: gula e luxúria, considerados impulsos da carne, e os demais vistos como perturbações do espírito – vaidade, cólera, inveja, acídia, tristeza e avareza. Pôntico considerava os prazeres da carne os mais complexos, e recomendava moderação frente a essas tentações arcaicas do ser humano.


Já para Gregório Magno, são cinco as tentações da gula:


O vício da gula nos tenta de cinco modos, a primeira é comer antes da hora, a segunda é procurar carne e bebida delicadas; a terceira é comer exageradamente; a quarta é curiosidade em cozinhar e temperar as carnes; a quinta é comer gulosamente. Esses são os cinco dedos da mão do diabo, por meio dos quais ele atrai os homens ao pecado. O que se resume no seguinte verso: “inoportuno, luxuoso, requintado, demasiado e ardente”.


Nos primeiros séculos da vida monástica, ressaltavam-se duas palavras de origem grega sobre a gula: gastrimargia, loucura do ventre, e laimargia, loucura da boca. As autoridades eclesiais atentavam para o conteúdo deslocado do prazer espiritual (gozo psíquico) da gula, mais do que para o ato de ingestão propriamente dito. O maior perigo da gula era “o olhar e a veneração de seu próprio umbigo como a um Deus”. No campo da espiritualidade, não estava implícito a psiquê, a personificação da alma?


De todos os pecados capitais, a gula talvez seja o único que ninguém tenha vergonha de assumir. Tornou-se o maior vício do capital no mundo neoliberal. Nos dias atuais, a mesa deixou de ser referência de espiritualidade e migrou para a paixão do fast food. Da santa bulimia à profana bulimia. O ato de comer transformou-se na paixão de devorar-se, drogar-se e consumir.


Em diversos idiomas, “comer” é sinônimo de “copular”, sentido revelado de forma às vezes mais suave – “comer com os olhos”, “ela engoliu-me todo com sua faminta boca” – ou agressiva – “cair de boca” e outras revelações de caráter vulgar. Essas manifestações sinalizam a mudança do corpo biológico (o instinto da fome) para o corpo erógeno (o desejo). O ato de comer é, também, demanda de amor de um outro para eliminar a insatisfação. Na ausência desse outro ocorre crises de ansiedade geradora da busca compulsiva pela comida.


Em seu Manifesto antropofágico, Oswald de Andrade vai dizer que “só a antropofagia nos une. Socialmente. Economicamente. Filosoficamente”. Por “canibalismo” e “antropofagia”, o autor compreende o fenômeno tipicamente brasileiro da pluralidade, da incorporação do outro ao que já é próprio do sujeito, produzindo um novo elemento, distinto de ambas as partes. Essa “nova identidade”, pelas inúmeras possibilidades de combinação de fragmentos constituintes, não se torna fixa e imutável, mas fluida, sensível às alterações de quaisquer de suas partes. Falamos, aqui, da absorção da cultura alheia sem que, para isso, seja preciso submetê-la, fazê-la sumir. Ao contrário, a “antropofagia positiva” é a própria criação, pois incorpora o que o outro pode oferecer em sua singularidade. Nisso o Brasil obteve o sucesso que outros países não conseguiram: nossa grande riqueza é exatamente a mistura da oralidade sensual, da religiosidade, das culturas culinárias, das raças e línguas. No entanto, isso não imprime ao país, nem à sua imagem, algo que possamos compreender como uma “identidade da mistura”. Simplesmente porque toda identidade é constituída de um imenso caleidoscópio de possibilidades de combinações.

 

Sobre a obra:

Os sete pecados parecem ter inspirado a brincadeira popular de que “tudo o que é gostoso”, ou faz mal ou é pecado. Mas não se trata só disso.


Daí, o que nos importa destacar neste livro é a relação entre cada um dos sete pecados e o que Lacan nomeou de gozo – evidentemente, com base no canônico Além do princípio do prazer, de Freud. O gozo é aquilo que se obtém ao atravessar a barra que limita nossa liberdade, em face da dignidade do outro, dos outros. O autor deixa para incluir essa consideração no último capítulo. Embora “gozo” seja o termo popularmente usado para designar o orgasmo, em Lacan o gozo é aquilo que ultrapassa tanto os prazeres permitidos quanto aqueles os que algumas religiões e diferentes códigos culturais proíbem. Gozo é o que atravessa a barra da castração simbólica que limita nossos excessos. Claro que a menção à teoria lacaniana para abordar o cânone bíblico é extemporânea, mas ajuda a revelar o que sempre esteve ali – ou “aqui”. As perversões  flertam com o gozo – e, às vezes, chegam lá. O perverso se coloca em posição de exceção diante da barra que nos limita diante da dignidade e da liberdade do outro. A violência e os ódios, motivadores de outros pecados, também.


Faço menção às liberdades extra-acadêmicas a que William Castilho recorre como a de tomar depoimentos de amigos, correndo o risco de ser acusado de falta de rigor. Ora, estamos aqui no campo da moral, das práticas de linguagem e, também, da ideologia. É preciso arriscar. A forma de rigor mais absoluta que conhecemos, como todos sabem, é o rigor mortis. O texto que aqui se apresenta é muito vivo.


Maria Rita Kehl


Sobre o autor:

William Cesar Castilho Pereira, mineiro, estudou Psicologia e é doutor pela UFRJ. Psicólogo clínico, atuou por várias décadas como professor da PUC-Minas. Foi docente da Faculdade dos Jesuítas (Faje). Assessor em trabalhos comunitários e analista institucional. Assessor da Arquidiocese de Belo Horizonte e do Conselho Episcopal Latino-americano – Bogotá – Colômbia (Celam). Escreveu pela Editora Vozes: Dinâmica de grupos populares, Uma escola no fundo do quintal, Associação de pais e mestres, Nas trilhas do trabalho comunitário e social: teoria, método e prática, Formação religiosa em questão e Sofrimento psíquico dos presbíteros: dor institucional. Pela Editora Imago, escreveu: O adoecer psíquico do sub proletariado, e pela Editora Lutador: Análise institucional na vida religiosa consagrada.


E-mail: williamccastilho@uol.com.br

 
 
 

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