O vocábulo preguiça, com raiz no latim pigritia, de piger, define o sujeito indolente, moroso na ação e preguiçoso. Há, também, outro termo latino, pinguis, que significa pesado, gordo, expressando a característica física da pessoa pejorativamente associada ao preguiçoso. De forma semelhante, o termo akedia, do grego clássico, indica desinteresse, indiferença e falta de atividade, tendo o mesmo sentido do vocábulo latino acedia. Evágrio parece ter sido o primeiro a identificar o demônio da acídia como “demônio do meio-dia”. O período da tarde e as práticas de jejum, provavelmente, teriam influenciado mais a indolência dos monges do que as tentações do demônio. Na tradição da Igreja, Delumeau188 percebe a acídia como sonolência espiritual, dificuldades dos exercícios religiosos, tristeza que apagava da alma o desejo de servir a Deus.
No início da Idade Média, os provérbios hebreus189, que são parte integrante da Bíblia, estimularam o imaginário social e os ditados populares sobre a indolência: “a indolência não assa sua caça”, “Todo labor dá lucro; o falatório só produz penúrias”, “A alma indolente terá fome”, “Sobre aquele que cruza os braços e se estica virá a indigência como um vagabundo e a miséria como mendigo”, “Preguiçoso na juventude, sofredor na velhice”.
A Igreja Católica não seguia os ensinamentos da cartilha leiga. Havia resistência da hierarquia em associar a acídia à repugnância ou à preguiça ao trabalho. A vida monástica compreendia-a como tédio espiritual. Com o tempo, os ensinamentos da cartilha leiga foram incorporados aos credos da Igreja. Três semelhantes caminhos contribuíram para essa síntese.
A primeira porta de assimilação dessa doutrina veio da concepção moral da ociosidade. A Igreja passou a pregar a dedicação constante à oração para combater a atividade livre, o que, atualmente, pode ser traduzido pelas máximas: “a ociosidade é a mãe de todos os vícios” ou “mente vazia, oficina do diabo”.
O segundo espaço de condenação da acídia, enquanto preguiça, criou-se na associação da pobreza ao horror, à condição de desprezo, à suspeita e ao temor. O marco visível da laicização da preguiça ganhou, na Igreja, a ideia de condenação da pobreza enquanto mal. Os leigos chamavam de preguiça o que os clérigos chamavam de acídia. A imagem de pobreza equiparou os conceitos de preguiça e acídia.
A última entrada deu-se pela alteração da concepção do tempo. O tempo medieval, rural, longo, foi declinando e cedendo lugar ao tempo acelerado mercantilista.
A cartilha de vigilância do tempo foi reescrita com novas concepções: “nada é mais precioso do que o tempo”, “perda de tempo” e “prestar contas do tempo”. Modernamente, essas prescrições resultaram no famoso pensamento capitalista do físico americano Benjamin Franklin, no século XVIII: “tempo é dinheiro”.
Evágrio Pôntico deu especial destaque ao desânimo entre os Eremitas do Deserto. Dos oito pecados capitais, selecionou dois com o mesmo significado: acedia (acídia) e tristeza. A preguiça era considerada pecado silencioso e de aparência tranquila. Contraditoriamente, era muito preocupante e inspirava cuidados pois escondia, sorrateiramente, sintomas de tristeza ou melancolia. Para Evágrio e Cassiano, a vida monacal era propícia ao surgimento da acídia, pois lá viviam, sobretudo, pessoas solitárias, devotas do silêncio e da meditação enquanto busca de Deus.
Sobre a obra:
Os sete pecados parecem ter inspirado a brincadeira popular de que “tudo o que é gostoso”, ou faz mal ou é pecado. Mas não se trata só disso. Daí, o que nos importa destacar neste livro é a relação entre cada um dos sete pecados e o que Lacan nomeou de gozo – evidentemente, com base no canônico Além do princípio do prazer, de Freud. O gozo é aquilo que se obtém ao atravessar a barra que limita nossa liberdade, em face da dignidade do outro, dos outros. O autor deixa para incluir essa consideração no último capítulo. Embora “gozo” seja o termo popularmente usado para designar o orgasmo, em Lacan o gozo é aquilo que ultrapassa tanto os prazeres permitidos quanto aqueles os que algumas religiões e diferentes códigos culturais proíbem. Gozo é o que atravessa a barra da castração simbólica que limita nossos excessos. Claro que a menção à teoria lacaniana para abordar o cânone bíblico é extemporânea, mas ajuda a revelar o que sempre esteve ali – ou “aqui”. As perversões flertam com o gozo – e, às vezes, chegam lá. O perverso se coloca em posição de exceção diante da barra que nos limita diante da dignidade e da liberdade do outro. A violência e os ódios, motivadores de outros pecados, também. Faço menção às liberdades extra-acadêmicas a que William Castilho recorre como a de tomar depoimentos de amigos, correndo o risco de ser acusado de falta de rigor. Ora, estamos aqui no campo da moral, das práticas de linguagem e, também, da ideologia. É preciso arriscar. A forma de rigor mais absoluta que conhecemos, como todos sabem, é o rigor mortis. O texto que aqui se apresenta é muito vivo. Maria Rita Kehl Sobre o autor:
William Cesar Castilho Pereira, mineiro, estudou Psicologia e é doutor pela UFRJ. Psicólogo clínico, atuou por várias décadas como professor da PUC-Minas. Foi docente da Faculdade dos Jesuítas (Faje). Assessor em trabalhos comunitários e analista institucional. Assessor da Arquidiocese de Belo Horizonte e do Conselho Episcopal Latino-americano – Bogotá – Colômbia (Celam). Escreveu pela Editora Vozes: Dinâmica de grupos populares, Uma escola no fundo do quintal, Associação de pais e mestres, Nas trilhas do trabalho comunitário e social: teoria, método e prática, Formação religiosa em questão e Sofrimento psíquico dos presbíteros: dor institucional. Pela Editora Imago, escreveu: O adoecer psíquico do sub proletariado, e pela Editora Lutador: Análise institucional na vida religiosa consagrada.
E-mail: williamccastilho@uol.com.br
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