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  • Redação

Eucaristia, onde tudo se transforma

Num primeiro percurso de reflexão, consideremos a Eucaristia como signo. É assim que a percebemos quando contemplamos e adoramos o Santíssimo Sacramento, durante a missa ou fora dela. Ainda não estamos no coração da experiência eucarística, que se realiza na ação sacramental, mas já recolhemos algumas consequências dela.

A hóstia da missa simboliza porque foi consagrada – portanto, elevada pelo Cristo numa relação única com Ele. A consagração, pelo ministério da Igreja, depende totalmente da intenção divina, mas a realidade da hóstia não aparece senão àquele que a contempla com esta atenção especial que é a fé. Pelo signo eucarístico, graças à conjunção da intenção (de Cristo) e da atenção (do crente), a aliança de amor entre Deus e o homem se realiza e se fortifica. Por ser pessoal, essa aliança é essencialmente acesso a uma comunhão universal, abraçando toda a humanidade e alcançando, a partir dela, o cosmos.


Um espectador da hóstia que não tivesse fé não veria nada além de um objeto tão incompreensível para ele quanto um fetiche africano, do qual ele não poderia admirar mais do que o conteúdo estético. E nós, podemos encontrar em nossa experiência corrente algo que poderia conduzir na direção de uma compreensão da Eucaristia como signo proposto à fé? É o que eu gostaria de mostrar, através de um primeiro exemplo, qual seja o das alianças de casamento.


Natália e Fabiano, a alguns meses de seu casamento, entram numa joalheria para escolher suas alianças. Dezenas de modelos, de diferentes preços, surgem diante de seus olhos. O que se passa em seus corações? Decerto algo muito diferente de quando se encontrassem numa loja de móveis, para comprar uma mesa ou uma cama. O anel que vão levar não tem nenhuma importância utilitária, mas imenso valor simbólico. Eles ficarão ainda mais emocionados, no dia de seu casamento, quando, durante a celebração religiosa, trocarem as alianças dizendo: “Receba esta aliança em sinal de nosso amor e de nossa fidelidade”. O novo ritual católico do Sacramento do Matrimônio sugere um belo acréscimo: “Em nome do Pai e do Filho e do Espírito Santo”.


O que mudou, para essas alianças, entre o momento em que brilhavam em meio a outras num balcão de joalheria e esse momento do matrimônio? Sem dúvida se responderá, com razão: “O que mudou foi o significado desses anéis. Antes, eles tinham somente um valor comercial, um preço tabelado, enquanto agora têm um valor afetivo e relacional. Do mundo das simples coisas, eles foram transpostos ao mundo humano dos significados e dos laços interpessoais”. Um filósofo talvez possa utilizar a palavra transignificação.


Entretanto, para ir a fundo nessa reflexão, essa mudança não afeta também, ao menos um pouco, o próprio ser desses anéis, a substância deles? Não haveria como uma oscilação ontológica? Com efeito, suponhamos que, dez anos depois, Natália e Fabiano, apaixonados por montanha, se preparem para uma escalada rochosa difícil. Eles decidem então deixar as alianças em casa, num porta-joias, com medo de estragá-las quando se agarrarem com toda força nas fissuras de granito. Ao voltar – que lástima! –, o apartamento foi arrombado. Levaram o porta-joias com as alianças! Resolverá comprar outras novas? Talvez, mas estas não se tornarão aquelas alianças de seu casamento, para eles perdidas para sempre. Os novos anéis não terão exatamente o mesmo significado que os originais. E se, por acaso, o casal os achassem de volta, os novos iriam imediatamente para o armário. Em outras palavras, a “transignificação”, vista como uma consagração, não pode ser transposta arbitrariamente de um objeto a outro. Ela adere aos objetos consagrados.


O que torna as alianças de casamento insubstituíveis? É a consagração delas durante a celebração do sacramento. Esse momento não se repete. Perdidas ou roubadas, essas alianças conservam o próprio status, aos olhos de quem o conhece. Nenhum outro objeto pode substituí-las. Portanto, houve exatamente uma mudança ontológica nessas alianças, uma transposição, no sentido indicado acima.


Parece-me ser possível entrever, por meio desse exemplo, analógico – deve-se lembrar –, que, sob certas condições e em determinadas circunstâncias, a significação de um objeto material não é uma simples etiqueta colada nele, mas algo que, de certo modo, toca seu ser, sua substância, seu estatuto ontológico. O segredo dessa operação é a inscrição de um objeto no universo das relações humanas, a consagração. Classificar como ontológica a mudança operada não pode chocar senão os defensores de uma ontologia da substância, em que a relação é puramente acidental e, portanto, desempenha um papel muito secundário. Em contrapartida, se adotarmos a “revolução copernicana” aqui proposta, a de uma ontologia da relação, a consagração, enquanto mudança de relação com um sujeito, opera muito bem no nível ontológico. Este não é o último, que depende da relação com Deus, mas nem por isso pode ser negligenciado. Ele transfere o objeto para um novo universo, não somente de sentido, mas também de existência. Para recorrer a uma imagem, a consagração se assemelha um pouco ao fenômeno físico da radioatividade. Por uma leve mudança em seu núcleo, o átomo se põe a emitir uma radiação, que nada mais é do que uma interação nova com seu ambiente físico.


A consagração – lembremo-lo – é realizada pela intenção verdadeira de uma pessoa, reconhecida pela atenção de outra, no seio de uma relação de aliança. Ela resulta de um rito de instituição – privado ou não, religioso ou não – em que se expressam, em princípio em palavras, a intenção e a atenção.


A analogia com a Eucaristia como signo consiste precisamente no fato de que nada muda na realidade física do sinal. O pão e o vinho consagrados conservam todas as suas propriedades físicas e químicas, assim como os anéis. Mas tanto aqueles como estes são investidos de outro peso de realidade. Essa carga não lhes é exterior. Não consiste numa etiqueta colada, mas num enriquecimento de seu ser.


Tendo dito isso, ainda não visamos a mudança eucarística propriamente dita, mas efetivamente um de seus efeitos maiores. Pegando essa vereda, na catequese, traçaríamos, rumo ao sacramento, um acesso ao mesmo tempo simples e de respeito ao mistério. Nesse caminho, já estamos num universo de fé elementar230, aberto para o da fé propriamente cristã. A passagem de uma fé a outra não se tornou de modo algum evidente ou automática, mas é preparada.


Para dar um passo adiante e chegar a uma nova etapa de compreensão da Eucaristia, cabe-nos considerar a natureza particular do pão e do vinho, alimento e bebida.

 

falar da presença real hoje", publicado pela Editora Vozes.


Sobre o livro:


Nós possuímos um tesouro inestimável: a Eucaristia, fonte, âmago e ápice da vida cristã. Uma teologia novamente centrada na Eucaristia, na cristologia, numa eclesiologia de comunhão, tudo enraizado numa teologia e numa ontologia trinitárias: eis o que poderia não somente renovar, mas sobretudo tornar convergentes, talvez um dia reunidas, nossas tradições cristãs lamentavelmente separadas. O autor, assim, pacientemente, põe a fé em palavras, numa atitude decididamente catequética, como que nos tomando pela mão, para estimular a reflexão e tentar explicar o inalcançável.

O autor:


Michel Salamolard é presbítero da Diocese de Sion (Suíça). Exerceu vários ministérios, sobretudo na formação pastoral e catequética. Também se dedicou ao acompanhamento de jovens em dificuldade. Por meio de suas publicações, procura articular as grandes questões humanas e sociais da atualidade com a teologia cristã.

Compre no site: www.livrariavozes.com.br

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