O vocábulo “inveja”, com raiz no latim invidia-ae, significa desejo violento de possuir o bem alheio, tristeza pela felicidade ou prosperidade do outro. A estranheza dos afetos, ao ver o rival arruinado, faz com que a inveja seja sempre negada por qualquer ser humano.
A inveja provoca no sujeito um sentimento de menor valia, aprofundando a dor por sua autoimagem. A autoacusação atinge o âmago do caráter do sujeito, depreciando-o e desqualificando-o. Muitos classificam-na como a tristeza da alma. As raízes ocultas de sua origem atingem profundamente o narcisismo, provocando uma crise. Já que o invejoso funciona em segredo, o desconhecimento de seus atos desequilibra as relações afetivas. A percepção de sua inadequação faz com que ele se isole, enquanto a cobiça do sucesso do outro lhe provoca angústia.
Vários autores levantam a hipótese de que, ao contrário da luxúria, do orgulho, da avareza, da preguiça e da gula, a inveja seria o único pecado que não proporcionaria prazer ao sujeito. Particularmente, discordo dessa premissa. Considero que o movimento do invejoso é o de degradar o objeto admirado, desqualificando-o, visando ao gozo sadomasoquista. Esse ritual de adoração e depreciação é degustado e festejado com maledicência, fofoca, difamação, chistes e piadas de ódio.
Os humanos negam a inveja e classificam-na entre dois polos: a inveja “do bem e a do mal”. A ação de dividi-la tem como propósito aliviar a consciência moral. De um lado, “a santa inveja” ou “admiração”. De outro, a inveja como sentimento de aniquilação do outro. O mecanismo de defesa denominado “racionalização” acabará funcionando
precariamente, pois permitirá apenas envernizar os limites da destrutividade. Além do moralismo das duas expressões, há ainda a classificação apressada da inveja, nos campos teológico, psicológico e psiquiátrico, como pecado ou transtorno psiquiátrico. Ela é uma posição do olhar entre o sujeito e o outro. Como sinaliza Caetano, em sua música “Sampa”: “Quando eu te encarei frente a frente, não vi o meu rosto. Chamei de mau gosto o que vi, de mau gosto, mau gosto. É que Narciso acha feio o que não é espelho”.
Sobre a obra:
Os sete pecados parecem ter inspirado a brincadeira popular de que “tudo o que é gostoso”, ou faz mal ou é pecado. Mas não se trata só disso.
Daí, o que nos importa destacar neste livro é a relação entre cada um dos sete pecados e o que Lacan nomeou de gozo – evidentemente, com base no canônico Além do princípio do prazer, de Freud. O gozo é aquilo que se obtém ao atravessar a barra que limita nossa liberdade, em face da dignidade do outro, dos outros. O autor deixa para incluir essa consideração no último capítulo. Embora “gozo” seja o termo popularmente usado para designar o orgasmo, em Lacan o gozo é aquilo que ultrapassa tanto os prazeres permitidos quanto aqueles os que algumas religiões e diferentes códigos culturais proíbem. Gozo é o que atravessa a barra da castração simbólica que limita nossos excessos. Claro que a menção à teoria lacaniana para abordar o cânone bíblico é extemporânea, mas ajuda a revelar o que sempre esteve ali – ou “aqui”. As perversões flertam com o gozo – e, às vezes, chegam lá. O perverso se coloca em posição de exceção diante da barra que nos limita diante da dignidade e da liberdade do outro. A violência e os ódios, motivadores de outros pecados, também.
Faço menção às liberdades extra-acadêmicas a que William Castilho recorre como a de tomar depoimentos de amigos, correndo o risco de ser acusado de falta de rigor. Ora, estamos aqui no campo da moral, das práticas de linguagem e, também, da ideologia. É preciso arriscar. A forma de rigor mais absoluta que conhecemos, como todos sabem, é o rigor mortis. O texto que aqui se apresenta é muito vivo.
Maria Rita Kehl
Sobre o autor:
William Cesar Castilho Pereira, mineiro, estudou Psicologia e é doutor pela UFRJ. Psicólogo clínico, atuou por várias décadas como professor da PUC-Minas. Foi docente da Faculdade dos Jesuítas (Faje). Assessor em trabalhos comunitários e analista institucional. Assessor da Arquidiocese de Belo Horizonte e do Conselho Episcopal Latino-americano – Bogotá – Colômbia (Celam). Escreveu pela Editora Vozes: Dinâmica de grupos populares, Uma escola no fundo do quintal, Associação de pais e mestres, Nas trilhas do trabalho comunitário e social: teoria, método e prática, Formação religiosa em questão e Sofrimento psíquico dos presbíteros: dor institucional. Pela Editora Imago, escreveu: O adoecer psíquico do sub proletariado, e pela Editora Lutador: Análise institucional na vida religiosa consagrada.
E-mail: williamccastilho@uol.com.br
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