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Redação

Um amor que se estende ao infinito

No capítulo 15 de Mateus, ao nos darmos conta que ele escreveu para uma comunidade de cristãos de origem judaica, e a todo tempo mostrou que Jesus veio para as ovelhas perdidas da casa de Israel; mas aos poucos os horizontes foram se alargando e, ao encontrar com uma mulher estrangeira, Jesus expandiu seu coração e o domínio de Deus ao dar à mulher a resposta pela fé que ela professou.



Mas antes de entrarmos no texto que fala do encontro de Jesus com a mulher que será acolhida por Ele pela força da fé, é preciso falar que o capítulo 15 de Mateus começa com Jesus criticando a hipocrisia dos seus irmãos de fé, aqueles que conhecem tudo e, por conhecerem, acabam por deturpar e desprezam o que realmente é valioso e santo.


Depois de repreender então os religiosos de seu tempo, Ele se encontra com a mulher sírio-fenícia.


Jesus saiu dali e retirou-se para os arredores das

cidades de Tiro e Sidônia. De repente, uma mulher

cananeia, que vinha daquela região, começou a gritar:

“Senhor, Filho de Davi, tem piedade de mim!

Minha filha está sendo terrivelmente atormentada

pelo demônio”. Mas Ele não lhe respondia nenhuma palavra.

Os discípulos se aproximaram e lhe pediram:

“Manda-a embora, pois ela vem gritando atrás

de nós”. Jesus respondeu: “Não fui enviado senão

para as ovelhas perdidas da casa de Israel”. Mas ela

veio, prostrou-se diante dele e disse: “Senhor, socorro!”

E Ele respondeu: “Não fica bem tirar o pão dos filhos

e jogá-lo aos cachorrinhos”. Ela, porém, disse:

“Certamente, Senhor; mas também os cachorrinhos

comem das migalhas que caem da mesa de seus donos”.

Então Jesus lhe falou: “Ó mulher, grande é a

tua fé! Seja feito como desejas”. E desde aquela hora

sua filha ficou curada (Mt 15,21-28).


Jesus tinha acabado de chamar a atenção dos fariseus para terem cuidado com o fermento que usavam para fazer crescer a vida e a fé e se depara com esta mulher que era estrangeira, professava uma fé diferente, mas que ouvira falar dele e teve a coragem de vencer os conceitos e preconceitos para pedir, suplicar, implorar pela recuperação da filha.


Jesus tenta ignorá-la, mas os discípulos pedem que Ele despeça a mulher, que a atenda e a mande ir embora; eles estavam impacientes, como tantas vezes nos sentimos diante de situações complicadas e, até mesmo, simples.


A mulher insistia, mostrava coragem; curioso que o próprio Jesus vai nos ensinar que devemos insistir na oração, apontando o exemplo do amigo importuno (Lc 11,5-8).


Mas Jesus tratou mal a mulher, caso raro no evangelho, pois os relatos nos mostram Jesus sempre acolhedor e manso com os humildes e pecadores, embora fosse duro com os religiosos de “lata”. Jesus chamou a mulher de cachorra e toda a sua comunidade de fé, e algo espantoso aconteceu, a mulher deu a Jesus uma resposta que Ele não esperava; ela não retrucou, ela não agrediu, ela apenas concordou com Ele, mas, ao mesmo tempo, alargou-lhe o olhar (houve um processo de conversão do olhar). Pode ser que sejamos cães, mas os cães comem as migalhas que caem das mesas de seus donos, uma migalha da sua atenção, um farelo do seu amor, o mínimo do seu cuidado, uma pequena fração da sua graça é tudo que eu preciso.


Jesus então atendeu àquela mulher, ela manifestou diante dele coragem, persistência, fé e ousadia; ela mudou o olhar de Jesus e estendeu o amor dele para outros horizontes.


Creio que precisamos ter a mesma ousadia, a mesma coragem, precisamos “brigar com Deus” quando for necessário, mas que sejam brigas boas, que valham a pena, como no caso desta mulher e do servo Jó.


Jesus estendeu seu amor infinito aos pagãos, curou a filha da mulher que Ele chamara de cachorra há poucos instantes, nos ensinou que o Reino não tem cercas, grades e muros, mas se estende a todos os que têm a ousadia de crer.


Este diálogo e a ação de Jesus me fazem lembrar um poeta e místico persa chamado Rumi. Apresento aqui trechos de um poema dele.


O que fazer, se não me reconheço?

Não sou cristão, judeu ou muçulmano.

Já não sou do Ocidente ou do Oriente,

não sou das minas, da terra ou do céu.

Não sou feito de terra, água, ar ou fogo;

não sou do Émpireo, do Ser ou da Essência. [...]

O meu lugar é sempre o não lugar,

não sou do corpo, da alma, sou do Amado.

O mundo é apenas Um, venci o Dois.

Sigo a cantar e a buscar sempre o Um.

“Primeiro e último, de dentro e fora,

eu canto e reconheço Aquele que É.”

Ébrio de amor, não sei de céu e terra.

Não passo do mais puro libertino.

Se houver passado um dia em minha vida

sem ti, eu desse dia me arrependo.

Se pudesse passar um só instante

contigo, eu dançaria nos dois mundos.


Jesus e a mulher nos mostram que Deus é o amado, o Um que não tem fronteiras e que nos convida a ser um com Ele.


Após curar a filha da mulher corajosa, Jesus se deparou novamente com uma multidão faminta e mais uma vez repartiu o pão.


Jesus saiu dali e voltou para junto do Mar da Galileia.

Subiu a um monte e ficou ali sentado. Uma

multidão veio até Ele, trazendo consigo coxos, aleijados,

cegos, mudos e muitos outros, e os estenderam

a seus pés. E Ele os curou. O povo se admirava

ao ver que os mudos falavam, os aleijados saravam,

os coxos andavam e os cegos viam. E glorificavam o

Deus de Israel.


Jesus chamou os discípulos e disse: “Estou com pena

do povo porque há três dias estão comigo e não têm

o que comer. Não quero despedi-los em jejum para

que não desmaiem pelo caminho”. Os discípulos lhe

perguntaram: “Onde vamos conseguir, num lugar

desabitado, tantos pães para saciar tanta gente?” Jesus

lhes perguntou: “Quantos pães tendes?” Eles responderam:

“Sete e alguns peixinhos”. Então mandou

o povo assentar-se no chão, tomou os sete pães e os

peixes, deu graças, partiu-os e deu aos discípulos,

e estes os distribuíram à multidão. Todos comeram e

ficaram saciados; e dos pedaços que sobraram recolheram sete cestos cheios.

Os que comeram eram mil homens, sem contar mulheres e crianças. Depois

de despedir a multidão, Jesus entrou no barco e foi

à região de Magadã (Mt 15,29-38).


Os pequenos detalhes do texto se agigantam para nossa compreensão, repetindo a frase de Gregório Magno: “a escritura cresce com quem a lê”. As multidões foram a Jesus, tinham sede e fome. Primeiro a sede e a fome de acolhimento, de palavra, de libertação, de uma vida que possa ser vivida com dignidade; mas não eram anjos, eram seres humanos, vida real, com os seus desafios, suas dores e alegrias, seus sonhos e medos, suas contradições, e depois da fome espiritual surgiu a fome física e Jesus, mais uma vez, teve compaixão, e multiplicou os pães pela segunda vez, alimentando a todos.


Entre as riquezas deste segundo relato de multiplicação, quero mostrar dois detalhes que mostram como o encontro com a sírio-fenícia alargou o coração de Jesus. No primeiro relato em Mt 14,13-21. No primeiro texto sobraram doze cestos. Sabemos que o número doze tem toda uma relação com Israel: as doze tribos, os doze apóstolos, as doze colunas do Templo, os doze filhos de Jacó. E a multidão alimentada foi de 5 mil homens. Já neste segundo relato, com a sobra “encheram sete cestos”; sete é a soma de quatro (terra) e três (céu); portanto, um número que corresponde ao infinito. Assim sendo, na simbologia matemática bíblica, os sete cestos representam mais do que os doze, e a multidão alimentada foi de 4 mil homens (quatro (terra) = toda a humanidade); assim, o segundo banquete já não é apenas para os filhos de Israel, mas para toda a humanidade. Todos somos convidados a nos alimentar do amor de Deus que em Jesus se estende a todos os povos.


Rezemos:


Pai, somos todos estrangeiros neste mundo e nada

mais pode desejar o nosso coração que não seja habitar

no teu santuário, viver na tua presença, mas só

poderemos habitar o teu amor quando nos tornarmos

morada dele. Faz de cada um de nós o teu santuário vivo.


Amém.

 

Saiba mais sobre a obra:


O Evangelho de Mateus é provavelmente o mais conhecido entre os textos que relatam a vida de Jesus. Repleto de episódios de curas, milagres e ensinamentos, os relatos de Mateus mostram um interessante itinerário para reflexões que, passando pelos textos bíblicos, possibilitam momentos de reflexão e oração. (Trecho da obra)

Sobre o autor:


Enio Marcos de Oliveira nasceu em Rio Pomba, MG; décimo dos quatorze filhos de João Luís (Doca) e Geralda Reis; sacerdote e doutor em Ciência da Religião pela Universidade Federal de Juiz de Fora, tendo desenvolvido parte do seu doutorado no Instituto de Estudos Ecumênicos São Bernardino em Veneza, Itália, como bolsista da Capes.

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